O que é possível escutar e tecer para além das carências?
A noção de “vulnerabilidade” nos aponta as instabilidades, as incertezas e os riscos inerentes ao viver. Este conceito multifacetado é empregado em diferentes perspectivas de análise, sejam elas psíquicas, sociais, culturais, políticas ou econômicas. Mais apropriado, então, seria adotarmos um olhar sensível às diversas vulnerabilidades que atravessam sujeitos e populações, considerando, no entanto, que nem todos estão suscetíveis do mesmo modo, proporção e intensidade.
No campo sociopolítico, por exemplo, a condição de vulnerabilidade é utilizada para caracterizar a exposição acentuada de populações e de grupos específicos, como mulheres, crianças, adolescentes, idosos, negros, pessoas com deficiência, pop. LGBTQIA+, entre outros.
No que diz respeito, especificamente, à infância e juventude, a vulnerabilidade é fundamento da noção sustentada pela legislação brasileira, a partir da CF (1988) e do ECA (1990), de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento e em condição política de absoluta prioridade, em virtude da incapacidade relativa de suprir por si mesmas as suas necessidades básicas, além de reconhecer e de defender plenamente os seus direitos.
Do ponto de vista psicanalítico, esse espaço temporal da vida não é cronologicamente dividido em fases lineares e contínuas do desenvolvimento. Trata-se, antes, de um processo de constituição do sujeito, atravessado por um tempo lógico, inconsciente, de trabalho psíquico que envolve fechamentos, (re)aberturas, rupturas, contornos e (des)continuidades, com todas as incidências sociais, culturais, políticas e econômicas que permeiam essa trans-formação subjetiva.
Podemos, assim, pensar em vulnerabilidades que incidem nesse processo de descoberta, significação e construção de um lugar no mundo, marcado por desejos, (des)encontros, contradições, ambivalências e um bocado de sofrimentos, que demandam ancoragens e suportes identificatórios aos diversos atravessamentos que a vida continuamente nos impõe. Nesse sentido, não podemos desconsiderar a influência do território como agenciador de subjetividades e as instabilidades que muitas vezes marcam profundamente a nossa trajetória enquanto sujeitos.
Se do ponto de vista sociopolítico, a vulnerabilidade diz respeito a uma camada a mais de riscos que ameaça, fragiliza e marginaliza os sujeitos, a noção de “vulneração” diz respeito a condições concretas, ou seja, a uma vulnerabilidade consubstanciada, na qual os danos já estão instaurados, restringindo o acesso a recursos, oportunidades e serviços e impossibilitando a mobilidade entre as estruturas econômicas e sociais.
É crescente, por exemplo, o número de famílias em situação de rua no Brasil em virtude do aumento da vulnerabilidade socioeconômica e psicossocial, que se apresenta e se desdobra numa fragilização e ruptura de vínculos, numa precarização das condições de acesso ao trabalho, aos serviços de saúde, educação e proteção social, que desenraiza os sujeitos dos seus lares e territórios.
A população de rua, nesse sentido, deve ser considerada como grupo vulnerado, pois a restrição a condições dignas de sobrevivência concretiza o estado de vulnerabilidade precedente. Socialmente invizibilizada essa população encontra-se vulnerada em diversos sentidos em relação aos demais habitantes e pelos próprios agentes do Estado, estando diariamente exposta à fome, a intempéries climáticas, a problemas de saúde e a violências.
A redução da condição de vulnerabilidade e da situação de vulneração demanda do Estado investimentos na preservação dos direitos humanos fundamentais. O isso significa? Construção de políticas públicas que visem à equidade nas ações de proteção à população, além de ações afirmativas e reparadoras promotoras de autonomia, integridade e dignidade, e acesso a serviços de saúde, sanitários, assistenciais, educacionais, entre outros.
Algumas das estratégias de "proteção" do Estado às crianças e aos adolescentes vulnerados, por sua vez, resultam no acolhimento familiar institucional e na interdição da parentalidade com a suspensão da Guarda.
Na letra da Lei (art. 23, ECA), “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar”. Apesar disso, abismos separam os discursos e as práticas institucionais. Entregando os pequenos “sujeitos de direitos” a cuidados anônimos, acreditamos estar protegendo (?) as crianças, mas “olhamos torto” para adolescentes em conflito com a lei e condenamos os adultos.
A destituição da Guarda familiar, nesse sentido, é em alguns casos uma intervenção que perpetra o ciclo de violências já sofridas pela ausência do Estado e de políticas públicas eficazes. A violação dos direitos de crianças e adolescentes necessita de um olhar crítico sobre o contexto sócio histórico e cultural que atravessa a configuração e a dinâmica de cada família vulnerada.
Frequentemente intervenções produzidas nesse âmbito culpabilizam e sentenciam sujeitos vulnerados, através de leituras individualizantes, desconsiderando a cronicidade dos problemas sociais, políticos e econômicos que os acompanham. Análises que enfatizam apenas as precariedades, as carências financeiras e afetivas, além das omissões e das ausências do Estado e da sociedade, produtoras de uma suposta “desestruturação familiar”, reproduzem o discurso normalizador da exclusão.
O que seria possível escutar, narrar e tecer para além da obviedade das ausências e carências?
Afirmar os esforços e as saídas construídas “apesar de”, reafirmar a potencialidade dos laços e das redes... O trabalho dos que atuam nesse contexto não deve se resumir à realização de entrevistas e à escrita de laudos, mas à produção de intervenções promotoras de abertura, inclusão, articulação, desejo de saber e responsabilização do sujeito, da sociedade e do Estado.
Julia Torres
Referências de Leitura:
Altoé, Sônia, & Silva, Magali Milene. (2013). Características de uma clínica psicanalítica com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Estilos da Clinica, 18(1), 125-141.
Costa, Samira Lima da, Ping, Chao Tsai, & Massari, Marina Galacini. (2018). Famílias em situação de rua: perspectivas de trabalhadores e usuários do suas sobre proteção social e guarda familiar. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 13(4), 1-20.
Cury, Munir (Coord.) (2013). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. São Paulo: Malheiros.
klautau, Perla. (2017). O método psicanalítico e suas extensões: escutando jovens em situação de vulnerabilidade social. Rev. latinoam. psicopatol. fundam, 20 (1).