A Lei da Alienação Parental n° 12.318/2010 tem sido pauta de muitos debates acalorados, existindo hoje alguns Projetos de Lei que pedem a sua alteração e algumas propostas de revogação. Não podemos negar que a discussão lançou mais luz sobre as disputas de poder que incidem nas relações parentais e as diferentes formas pelas quais os filhos são enlaçados pelos excessos maternos e paternos antes, durante e após uma separação conjugal, acentuados nos processos de litígio judicial.
A expressão “alienação parental” (AP) deriva do conceito de Síndrome da Alienação Parental (SAP), proposto pelo psiquiatra infantil norte-americano Richard Gardner, na década de 1980, num contexto em que diversos outros diagnósticos sindrômicos relacionados ao litígio conjugal foram propostos, seguindo a tendência de patologização e de judicialização do que há de mais íntimo da vida privada. Enquanto a primeira versa sobre atos de manipulação que visam desqualificar e segregar a convivência entre a criança e um dos genitores, a segunda seria um desdobramento desta, que se manifesta num conjunto de comportamentos de rejeição infantil contra o outro genitor.
Muitas polêmicas gravitaram em torno destes conceitos desde então, sobretudo da SAP. Algumas questionavam a ausência de estudos que conferissem validade científica ao fenômeno, umas, a imprecisão conceitual, outras, o reducionismo de uma análise focada apenas na expressão comportamental, e outras denunciavam a desvirtualização e aplicação do argumento para fins equivocados, como o escamoteamento de práticas intrafamiliares abusivas.
Resituar a origem da expressão “alienação parental” parece fundamental para lembrar que, embora psicólogos e psicanalistas sejam os principais convocados à produção de pareceres e laudos sobre o tema, este é um conceito que nasce na fronteira dos discursos médico e jurídico. A complexidade dos vínculos familiares, portanto, deve ser considerada a partir dos próprios arcabouços teóricos da Psicologia e da Psicanálise, aptos à complexa análise da sobredeterminação da subjetividade humana afetada pelos seus atravessamentos sociais.
Na contemporaneidade, há um modo particular de lidar com o sofrimento, no qual os dissabores, as contingências e quaisquer signos da falta, que fazem parte da estrutura mesma do laço social, não são bem acolhidos. Nessa via, as dificuldades e falhas próprias ao exercício da parentalidade são muito pouco toleradas, refletindo, ainda, as querelas de uma sociedade em transição: em franca flexibilização das formas de conceber o laço conjugal e parental, mas sustentada durante muito tempo na rigidez do modelo de família nuclear patriarcal amparada na divisão sexual do trabalho.
Nesse contexto, os genitores são convocados ao compartilhamento do saber médico e pedagógico que permeia a criação dos filhos, mas que historicamente foi delegado às mães. Dividir esse lugar não é simples. Exige um movimento duplo: de apropriação dos cuidados do lado paterno e de concessão do lado materno. Ademais, mães e pais são lançados aos sentimentos contraditórios que permeiam a ruptura de um tácito contrato amoroso e o seu processo de luto. Nessas travessias, um certo movimento produzido pela fratura do laço se impõe à fixidez do ideal de família e de um modo peculiar de se relacionar. É frequente, nesse trânsito, que os desafios da dissolução conjugal se embaracem aos da manutenção da corresponsabilidade parental.
A família se compõe desse entrelaçamento de vínculos conjugais e filiais, sendo o parentesco instituído por ficções sociais e subjetivas dos sujeitos que dela participam. Isso que Freud (1909) nomeou de romance familiar, Lacan (1953) chamou de mito individual do neurótico. Tanto Freud (1985) quanto Lacan (1949) situaram a condição de desamparo que marca todo organismo humano na ocasião do seu nascimento e o estado de dependência em que se encontra, de um outro semelhante que lhe serve de espelho e transpõe suas necessidades ao campo da demanda, dando amparo e contorno à sua estruturação psíquica.
As funções parentais, nesse sentido, constituem-se como suporte às identificações alienantes (imaginárias e simbólicas) das quais o sujeito, em sua travessia, deverá paulatinamente se separar a fim de se constituir como desejante. A identificação possui uma função de enlace, sendo definida por Freud como a “mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa”. As marcas transmitidas e capturadas através dos significantes na infância e na adolescência são bússolas que (des)orientam os sujeitos ao longo da vida.
Há muito, Freud (1909) assinalou a ambivalência presente nas relações parentais, primeiramente, fonte de autoridade, confiança e identificação e, posteriormente, núcleo de conflitos que precedem um difícil processo de desidealização e desligamento familiar. Assim, quanto mais a criança ama os seus objetos, mais sensível parece estar aos seus desapontamentos.
Em meio aos simultâneos processos de separação (subjetiva e familiar) vivenciados, os filhos podem ser tomados como objeto de disputa e de gozo por aqueles que exercem as funções parentais e abusam de sua posição transferencial parental. Apesar de todo o discurso de defesa e de proteção em nome do superior interesse da criança, que se apresenta na cena judicial, não raro, a consideração das vulnerabilidades, que permeiam o processo de constituição subjetiva infantil, fica em segundo plano.
Ao natural processo de desligamento da autoridade parental, alguns elementos podem se justapor, acentuando o comportamento de resistência a uma dos pais, tais como: a existência de um vínculo frágil antes da separação; ausência de segurança em virtude do testemunho de violências ou de vivências desagradáveis; resposta a práticas parentais rígidas, pouco afetivas ou dialogadas; recasamento do genitor(a) e divisão da atenção parental; percepção de fragilidade emocional de um dos genitores e desejo de protegê-lo; efeitos da própria judicialização do litígio que induz a conflitos de lealdade que evoluem para formação de alianças afetivas.
A influência consciente ou inconsciente de um genitor sobre o filho, no entanto, nem sempre é suficiente para produzir alianças afetivas. Enquanto algumas ficam coladas aos discursos parentais, outras já são capazes de se posicionar como sujeitos, com seus próprios significantes, preservando sua condição desejante.
Se por um lado a nomeação de um mal-estar crônico pode produzir efeitos interessantes sobre a apropriação da vivência e a produção de formas de tratamento da questão, por outro é também capaz de produzir análises simplistas, aprisionamentos e desresponsabilização sobre a desordem endereçada ao judiciário. Se a família se constitui num entrelaçamento de subjetividades, no qual cada um contribui com sua cota de gozo e de alienação, a importância do analista não reside em identificar de modo maniqueísta a presença de alienação parental e de um único culpado sobre a situação - o que pode favorecer até mesmo o agravamento do conflito e a cronificação do litígio.
Para além do âmbito judicial, a potência de sua intervenção consiste, antes, na clarificação sobre o modo como estas subjetividades se enlaçam, e na promoção de aberturas discursivas e de reposicionamentos subjetivos dos sujeitos em seus laços, pois os significantes e as narrativas que alienam os filhos à verdade do Outro parental não devem lhes bastar.
Julia Torres
Referências de Leitura:
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Brandão, E. P. (2016). Psicanálise e as questões da perícia em meio às disputas familiares. In: E. P. Brandão (Org.), Atualidades em psicologia jurídica. Rio de Janeiro, RJ: Nau.
Dias, J. (2020). Filhos entre laços familiares judicializados: uma leitura psicanalítica sobre o fenômeno da alienação parental (Dissertação de Mestrado), Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA.
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Freud, S. (1909). Romances Familiares. In Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
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Lacan, J. (1953). O Mito Individual do Neurótico. Lisboa: Assírio & Alvim.
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