Nos precipícios d'alíngua
Nos precipícios d'alíngua
Encharcou-se de linguagem ao ressonar d'alíngua, quando, ao sugar as primeiras letras, o sulco das sílabas grafagou melodicamente, corpo a corpo, sua pele opaca. Ao toque, alíngua aqueceu-se de sons, tons, colo-riu-se, regozijante.
A excitação das curvas e esquinas vocais, a precipitação do significado, a fugaz satisfação do sentido e, por fim, a de-cadência de expressões excrucitantes, alvorecidas, dis...sonantes... também à beira da palavra havia risco d-cisivo, náuseas de sentido, cisões contextuais.
As primeiras custaram-lhe choros, calos, calores... calou-se, quase louca, rouca, sem leite, a boca seca, cheia de pão, letras, não... Por bancar-rota, a germinação da linguagem descarr-ilhara fala adentro... os vagões do discurso trepidavam, ecoando o último verso... abismada, tonteava no precipício da frase, buscando a voz dissipada... “para que tantas reticências?”.
Alguns tenros acontecimentos lhe instigaram a este estado vertiginoso precedido por interrogações. Questões parcas, fatigadas de “por quês”, não lhe contentavam. Através de perguntas outras feitas após algum tempo – “como cheguei aqui?” – as respostas vinham muitas, aos poucos, às vezes como socos, inesperadas, fugidias, insuficientes...
Numa delas, encontrou uma palavra encoberta, escandida e derramada nos cantos da infância. A dita cuja lhe prometera emprestar materialidade líquida à solidez da dor: liquidá-la. Solitária, com o corpo orvalhado em suor e lágrimas, com-pulsão de saber, precipitou-se sujeitinha em sua primeira e mais longa pesquisa etimológica: “de onde vem as palavras?"
O peso da oral-idade rendeu-se, mais tarde, à grav-idade do rabisco, dando prolongamentos à coisa. Nos poros, onde vertiam prantos, banhou a'língua cálida... sem leite, fez leituras e escreveu texturas, grávida de palavras.
Nessa grafia escarpada de desejos sus-surrados, as orações mal ditas pendiam dos pensamentos... suplicantes à pena, quedavam quase benditas no papel, onde tateava o termo mais justo à borda infinita do texto...
Naquele lugar de elaborar insufi-ciências, regou o tempo perseguindo uma meteorologia poética, como se a palavra atônica, afônica, de nebulosa pronúncia, pudesse escorrer do céu, da boca, nas mãos, translúcida, previsível, encantada.
A brejeira sujeitinha margeava o escorregadio rio da linguagem, pescando palavras densas em suas profunduras. E com elas pensava iluminar as ideias e enfeitar os monturos da vida, porque empenhada estava desde cedo em seus or(de)namentos.
Embalada por um realejo afin-a-dor de desejos, queria ir à (car)caça, ao osso da palavra, explorar sua anatomia, dissecá-la, debruçar-se no fóssil, fisgá-la em condição de semente. Pensava poder descamá-la, encontrar suas espinhas, alcançar os pequenos pedaços de sua imens-idade, perscrutar seus rumores, ressuscitar seus desusos, vasculhar suas mentiras, remontar as in-significâncias do seu corpo, buscando noutras camadas as respostas ao enigma de sua couraça.
Esse desnudamento tomou-lhe tempo, ocupou lhe anos... Colecionou formas e significados, forjando sonetos, equilíbrios, poemas perfeitos, em harmonias mi-li-métricas. Após concertos, alíngua, corpo gozoso, de tão rarefeito, poético, consertada, pesou como bigorna, ferramenta para tímidos polimentos.
Passou a manipulá-la seriamente, privilegiando coesão, pertinência, sintaxe e coerência. A falação sem razão, o fazer d’alíngua brinquedo, partitura, despojamento, onde o som ressalta ao sentido, fadados ao desvanecimento.
Queria gozar de todo jeito, extrair de uma forma todo significado e mais ainda... mas tudo era muito pouco, um pouco de-mais. Contr-adições, contrariações, traições d'alíngua... Desgramática! O diacho era achar ou perder sentidos totais, melhor seria deixá-los viver parciais, vê-los morre...r e nascer... renascê-los.
Entre brilhos e breus, amanheceres e anoitecimentos, sentiu ser crucial desacomodar a retina, deixar as coisas rotineiras que sabia de cor para trás. Enlutar-se não era constituinte do morrer, cujo destino é calar, mas sim do viver, que é falar e ao mesmo tempo sempre deixar algumas coisas por dizer... Quando enamorada, por sinal, deu de cara com essa tal palavra “indizível”, escancarando-lhe a insuficiência da linguagem em tapar o furo do laço, o (des)encontro com o Outro.
Na porosidade d'alíngua, a vida expand...ia-se e contra...ia-se em des-amparos. Angústia, por-tanto, quando nada socorria, desaguava a palavra, que liquefeita escorria deixando à deriva os (des)troços do viver. Inibições, grilhões à (ca)beça, abotoaduras aos punhados... a palavra da boca re-colhida, minguava às mãos, en-colhia o sentido, suturando com cola imaginária as com-portas d'alíngua, amuralhando-as.
Assim, notou que ela [a palavra indizível] sofria por acúmulo de silêncios e por força de cataratas que emudeciam alíngua e umedeciam os olhos. Perplexa com a existência desta ausência de palavra, fitava aquela que não só a sabia, mas parecia tapeá-la com estranha destreza. Ludibrilhante, a dita cuja lhe mostrara que no horizonte, em torno de um vazio, alguma coisa contingente, acenava, escre-via-se como possibilidade.
Curvado ao mar, o corpo da palavra, incandescente, solar, mudara-lhe o rumo, o sentido do olhar. Em suados desvios, avistava Clarice entre Carlos, Manoel, Rubem e Rosa, abrindo frestas, emprestando à pupila, destreinada, uma sensibilidade crepuscular frente àquilo que é paradoxalmente humano.
“Ouro esboço do crepúsculo”[1], essa “mistura dilacerante de beleza e tristeza” [2], faz-nos chorar, porque nos habita, porque somos seres crepusculares. Padecemos desta “sina obscura” do falar, do sentir e do pensar que, além de crepúsculo, “pode ser uma aurora” [3]. Assim, no céu do corpo, o “desejo é apenas uma casa”[4], onde o amor relampeja cifrado e “se aprende no limite”, arquivando-se toda ciência [5].
Rubem amaciava as palavras, enxertando ternura à dor que restava não liquidada, sub-vertida por Carlos ao estado de sede infinita, desinventada por Manoel, palavrejada por Rosa, numa Outrarte, onde Clarice pintava e bordejava pontes, contornando aqueles precipícios que no princípio pareciam não ter nome, abismos difíceis de se aproximar sem a vacilação do cair.
O lacro d’alíngua lacerado num des-c@lar de tontas letras, coral de tortos cantos, tantos contos, travessias... calor dissipado em poesia, cl-amor resgatado, in-justa impre-cisão, dis-posto no entre, no avesso, no tropeço do verso, onde, soluçantes, as palavras arritmadas desobrigavam o sentido, onde podiam ser isto, aquilo, e talvez mais, onde, exorbitantes, escorregavam no lim(b)o do dizer.
1 Guimarães Rosa. Sequência.
2 Rubem Alves. Crepúsculo.
Rubem Alves. Resta.
3 Clarice Lispector. Sobre a escrita.
4 Manoel de Barros. Poesia Completa.
5 Carlos Drummond de Andrade. Amor e seu tempo.
Júlia Torres