A com-posição poética e literária de um analista
A com-posição poética e literária de um analista
Como formar-se analista!? Após alguns “acordes” clínicos e teóricos, Freud des-for-matou essa questão. A psicanálise não é afeita a formatações, desse modo, arranjos outros foram necessários para Lacan tentar ar-re-matá-la e reformulá-la. Com outras palavras, sugeriu: com-posiciona-se um analista! Como sustentar, então, essa com-posição de analista? (1,2)
A psicanálise, enquanto discursividade, foi sendo fabricada ao tatear da experiência, nutrindo-se na provisoriedade dos seus pressupostos (3). Diversamente de um sistema filosófico, partimos, antes, de um saber não-todo constituído, mas constituinte nas veredas do Inconsciente (ICs) de cada um. Advertidos da dimensão Real, daquilo que escapa ao Simbólico, os psicanalistas devem estar sempre dispostos à revisão da teoria que os orienta. Estudada, praticada e desenvolvida em centenas de países, por diferentes teóricos, hoje falamos em psicanálises, sublinhando a sua pluralidade, pois não se reduzem àquela inaugurada por Freud, no final do século XIX.
Justo por isso, podemos localizar a pertinência do ensino da Psicanálise nas universidades, lugar onde o saber se supõe burocrático e universalizante. Essa temática, não é matéria nova nem estrangeira, mas foi posta em pauta pelo próprio Freud, no começo do século XX. Certamente, neste campus universitário, no qual circulam outros discursos, poderiam ser tecidas fecundas interlocuções com a arte, literatura, mitologia, história, filosofia e religião, promovendo uma mútua oxigenação de seus arcabouços, sinalizou Freud (4). Mas seria possível transmitir a psicanálise enquanto disciplina, fugindo às convenções um tanto quanto acachapantes das instituições universitárias?
Pseudoexatidões cientificamente modernas e aclamadas são, de saída, opostas à diversidade, à plasticidade e à estraneidade dos efeitos do Inconsciente, que resiste a toda mecanização da técnica, ludibriando as formas e os estilos mais cautos e eruditos (2;5). Assim, apenas numa posição avessa, mas não aversiva, pode-se preservar a singularidade do sujeito, auxiliando-o em suas travessias.
Daí que a com-posição de um analista não poderia passar pela conquista de uma certificação nem pela obviedade de uma rota regulamentar. Não se trata de lecionar, mas de invencionar o caminho que, não sendo único, nem por isso sem rigor, será sempre singular. Mas não queiramos inventar o instrumento, pois Freud já havia dedilhado suas cordas, e àquela indagação, considerou a pertinência, mas também a insuficiência do ambiente acadêmico à formação dos analistas, que poderiam encontrar nas sociedades psicanalíticas ambiente mais propício à sustentação do tripé: estudo, supervisão e análise pessoal (4).
A malha conceptual e a técnica do ofício foram pouco a pouco sendo postas aos analistas, mas estes deveriam estar também dispostos à psicanálise. Nesse sentido, Freud apontou-nos uma direção: é apenas passando pela própria experiência da análise que se “adquire na própria carne, por assim dizer, impressões e convicções que [se] procura em vão nos livros e nas conferências” (1). Em outras palavras, é primeiro indo à orquestra que se afinam a escuta e o desejo de com-posicionar-se nesse lugar, autorizando-se de si, como Lacan afirmou mais tarde (6).
A recomendação freudiana estava sintonizada à destacada necessidade de o analista despir-se, tanto quanto possível, de suas paixões, censuras, ambições pedagógicas, bem como, dos convencimentos, das sugestões e da racionalização do tratamento, evitando “pontos cegos" e con-fusões com a subjetividade do analisando, através de projeções e identificações imaginárias e uniformizantes.
A opacidade do analista, longe de uma insensibilidade ou apatia, significava que, tal como um espelho, ele deveria refletir “senão o que lhe é mostrado”, ou, tal como um instrumento de cordas, fazer ressoar as ondas sonoras vibradas em sua escuta. Ato que se traduz em uma escuta atenciosa e flutuante, em contrapartida à única regra fundamental à produção de uma análise: associar livremente (1).
Contudo, por algum tempo, as recomendações freudianas, engessadas por efeito, d-efeito, de-formação, ou pretensão didática, restaram esquecidas à margem de p-receitos, re-ceitas, seitas.... Longe disso, a psicanálise, pela complexidade do seu objeto, exige frequentação, sendo este o ponto de partida de-cisivo, de cisão e de subversão, do movimento lacaniano.
Tal qual uma trama de significantes, a composição de um analista é permanentemente tecida por diversos entremeios e descontinuidades, através de um processo de afinamento e sustentação desejante, de turbu-lentos retornos: ao divã, ao texto, à discussão, de Lacan a Freud, servindo-se da arte, da literatura, da filosofia, da cultura… Trata-se de des-treinar os ouvidos, de manejar a urgência de concluir, “porque, compreendendo depressa demais, não se compreende coisa alguma” (7). Concluir envolve, pois, as de-composições, os equívocos, assim como, as “es-canções” no tempo de compreender.
Ambos, nesse sentido, destacaram a importância da literatura para os analistas, o modo como os poetas e os escritores antecipam o texto cotidiano de nossa experiência e as próprias elaborações psicanalíticas. Com o auxílio deles, Freud e Lacan leram o inconsciente como uma tipografia (6), ficcionada por cada sujeito, enlaçado em nós de linguagem e gozo (8).
Essa conexão entre literatura e psicanálise, entretanto, não deve ser estrangeira ou instrumental como um degrau de formação, senão capturada pela própria experiência poética reconhecida neste lugar que, em instantes, por re-fração de desejos, faz-se de-leito, mas também des-encontro para o corpo do Outro: o divã.
Não se trata de “tomar banhos de poesia macarrônica ou lições de tablatura das artes cortesãs”, muito embora se possa extrair daí certo embelezamento, esclareceu Lacan (2). Trata-se de escutar a verdade “ao pé da letra”. Isso não significa desvendá-la na literalidade da palavra, tampouco, de pregar uma gramática do ICs, mas de captar sua formulação como um fato de sintaxe, onde o sintoma, enquanto efeito de linguagem, des-estrutura-se e re-estrutura-se, de compreender a sua agramaticalidade, a insubordinação do sentido ao texto, ou, do significado ao significante. Pode-se até ensurdecer um dos ouvidos, desde que se aguce o outro na escuta dos sons, fonemas, locuções e frases, considerando suas pausas, escansões, cortes, períodos - aconselhou Lacan (2).
No divã, muitos sujeitos analistas em (de)composição se (re)encontram com poetas tais como Manoel de Barros, pois passam a ocupar muito de si com o seu desconhecer, para reinventar-se em outras ficções (9). Nessa reescrita, dar de cara com remendos de palavras, rasurar, redimensionar, perder e ganhar algumas letras, “cair no conceito” do Outro pode ser desconcertante, mas, ao mesmo tempo, valioso. Contornar os buracos, inventar modos de manejar os detritos d’alíngua, poder encontrar um nome, um lugar, não sem o outro, mas próprio. Freud resumiu, citando Goethe: “aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”. (10)
Cecília, por exemplo, contou-nos como foi difícil desalienar-se, sacrificar uma letra, signo carregado por gerações no seu sobrenome, para conquistar o seu nome de poetisa: “Deu-me um trabalho muito grande, ficar sem essa letra. Quando olhava para o meu nome sem ela, sentia como se me faltasse um pedaço, como se estivesse realmente mutilada, sem a mão ou sem o olho”, lembrava (11). Ao mesmo tempo, por mais saudade que sentisse dessa letra perdida que sempre pesou demais em seu nome, não se animava a reincorporá-la. Diante disso, abraçou-a ternamente e separaram-se. Fez-se, então, de autora, poema.
Não é sobre um de-curso ideal à formação em psicanálise, mas sobre a singularidade dos recursos e dos percursos, é sobre essa gradual com-posição do analista entre discursos (12). É necessário inventividade no exercício deste ofício, a fim de encontrar para ele diferentes caminhos, capazes de ultrapassar as rimas e os arremedos homogeneizantes próprios ao regime dos grupos, das massas e das sociedades.
O discurso do analista não se a-prende em tratados, manuais, enciclopédias, mas ressoa em antologias. Aprendiz de poeta, caça-dor de equívocos, um analista deve dar espaço aos mal-entendidos, aos vacilos da linguagem, dar voz ao sujeito, apostar em suas de-cantações e re-composições. A poesia acontece no caminho, na impre-cisão, no entre, no avesso, no tropeço do verso. Onde soluçantes, as palavras arritmadas, desobrigam o sentido, onde podem ser isto, aquilo, e talvez mais, onde, exorbitantes, escorregam no lim(b)o do dizer (13).
Assim, ser leitor de livros não basta. É preciso aventurar-se nas escrituras, nas partituras... Na composição de um analista, o próprio percurso analítico e as re-leituras que ele implica transmitem a métrica poética do inconsciente - que divide e costura o ser em nós – dimensão Outra, sem a qual não é possível operar a plasticidade da palavra, mirando, no avesso, outros versos, novas tessituras.
1. Freud, S. (1912). Recomendações aos médicos que exercem psicanálise.
2. Lacan, J. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956.
3. Freud, S. (1923) “Psicanálise” e “Teoria da Libido”.
4. Freud, S. (1919). Deve-se ensinar a psicanálise nas universidades?
5. Freud, S. (1913). O início do tratamento. Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I.
6. Lacan, J. (1968). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.
7. Lacan, J. (1957-58). Seminário 5. As formações do Inconsciente.
8. Lacan, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem.
9. Barros, M. (1993) Uma didática da Invenção.
10. Freud, S. (1913). Totem e tabu.
11. Meireles, C. (1944). História de uma letra.
12. Lacan, J. Seminário 17. O avesso da psicanálise.
13. Dias, J. Nos precipícios d'alíngua.
Júlia Torres