"O tempo da minha adolescência é lento, feito de grandes blocos cinzentos e pequenas saliências verdes ou vermelhas ou roxas. Os blocos não tem dias, horas, meses, anos e as estações são incertas, faz calor e frio, chove e faz sol"
Elena Ferrante, autora italiana cuja identidade permanece misteriosa, mais uma vez mergulha no universo feminino e na ambivalência dos afetos.
Em A vida mentirosa dos adultos, acompanhamos a travessia de Giovanna, dos doze aos dezesseis anos, numa Nápoles dividida, não apenas geograficamente entre o alto burguês e o baixo proletário, mas também afetivamente entre o dito e o não-dito, a palavra e o silêncio, entre a idealização e o desencanto juvenis.
Desde as primeiras páginas, o romance revela o impacto de uma frase paterna sobre a jovem: "está ficando com o rosto da Vittoria." Nesse dito, aparentemente trivial, inicia-se um busca pela enunciação de sua identidade. Nesse ponto, a escrita dialoga com a psicanálise freudo-lacaniana, revelando a (r)existência de palavras que nos marcam como cortes, que operam como significantes primordiais e, mesmo que imprecisas, reverberam na constituição de nossa subjetividade. A adolescente nos mostra como o olhar e os dizeres do Outro, especialmente parentais, inscrevem no corpo as primeiras referências sobre quem somos ou deveríamos ser.
"Eu me comportava assim, sobretudo, com meu pai, embora todas as suas palavras tivessem aos meus olhos uma credibilidade que me ofuscava e fosse enervante e doloroso tentar enganá-lo. Foi ele, mais ainda do que minha mãe, que martelou na minha cabeça a ideia de que nunca devemos mentir."
Ao longo da obra, Giovanna vive o processo de adolescer em sua radicalidade. Conforme descrito por Freud, há o questionamento da autoridade parental, a quebra das idealizações, o desvelamento de verdades desconfortáveis sobre os adultos. Nesse sentido, o romance atualiza uma das tarefas psíquicas mais complexas da adolescência: reconhecer que os pais não são deuses nem monstros, são falhos, contraditórios e, muitas vezes, mentem.
O corpo em transformação e o despertar da sexualidade atravessam a narrativa com a intensidade da experimentação. O desejo aparece como enigma e desencaixe, como nos (des)encontros com Corrado, com Rosário, com Roberto, com a própria imagem no espelho. A feminilidade, mistério tantas vezes percorrido na psicanálise, é metaforizada na pulseira que circula entre as mulheres da trama: símbolo de um legado ambíguo, ora encantamento ora prisão.
Mas a pulseira não circula livremente entre as mulheres, ela é desviada e transferida por mediação dos homens, oferecida como ornamento às que ocupam, em cada momento, o lugar da escolhida. A narrativa faz refletir como os signos da feminilidade ainda são apropriados e redistribuídos sob o crivo do desejo masculino, revelando uma transmissão marcada não por autonomia, mas por hierarquias e pactos patriarcais, aquilo que Valeska Zanello nomeia (em sua obra homônima) como "a prateleira do amor". Quando Giovanna decide abandonar a pulseira após sua primeira relação sexual, realiza um gesto de ruptura simbólica com os roteiros herdados, sinalizando uma possível escrita própria.
Outro ponto interessante da obra é o modo como a autora retrata os lutos femininos. O luto da mãe de Giovanna após o abandono do marido, a dor clandestina da tia Vittória pela morte de Enzo: ambos são vividos em moldes devocionais, sacrificiais, patriarcais, independente da ausência e dos dissabores. Giovanna os expõe e interroga, denunciando a forma como, para muitas mulheres, o luto de relações, ainda é sinônimo de silenciamento e apagamento de si.
A narrativa de Giovanna também permite refletir sobre o impacto das rupturas familiares e o complexo emaranhado de sentimentos que emergem na infância e na adolescência. A rejeição que ela passa a expressar em relação ao pai não traduz uma manipulação materna, como tantas vezes se quer crer nos tribunais de família, à luz da noção estreita de alienação parental. Trata-se, aqui, de uma reação subjetiva legítima diante da perda do ideal paterno, acrescida do testemunho de um sofrimento materno que a atravessa e marca.
Ferrante escreve as sendas da alma feminina sem floreios e com autenticidade. Em Giovanna, vemos a infância ruir, a adolescência explodir e a vida adulta começar com fratura e tropeços. A mentira dos adultos não é apenas engano, mas também estrutura, algo que se aprende a nomear, transgredir e (des)acreditar, ao construir a própria ficção.
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"Agarrar-se só ao presente, nua de lembranças como se acabasse de nascer. Via agora que jamais poderia se libertar das suas antigas faces, impossível negá-las porque tinha qualquer coisa de comum que permanecia no fundo de cada uma delas, qualquer coisa que era como uma misteriosa unidade ligando umas às outras, sucessivamente, até chegar à face atual. Mil vezes já tentara romper o fio, mas embora os elos fossem diferentes havia neles uma relação indestrutível. E o fio ia encompridando cada dia que passava, acrescido a cada instante de mais uma parcela de vida. Chegava a senti-lo dando voltas e mais voltas em torno do seu corpo numa sequência sem começo nem fim."
Encontrar palavras que traduzam a riqueza do primeiro romance de Lygia Fagundes Telles, não é fácil, estará sempre aquém da experiência de lê-la.
Escrito no século XX, através dele, a autora nos transporta para outro tempo, no qual os costumes nos remetem a outra realidade social e cultural brasileira.
Nesta narrativa fluída e cheia de camadas, a autora dá vida a Virgínia, pequena garota que se vê enodada nos mistérios de uma parentalidade delirante e distante.
Acompanhar o desenvolvimento de Virgínia reaviva em nós resquícios deste que é um momento marcado por fantasias e dissabores, desconstruindo a imagem de uma infância plena e despreocupada.
Percorremos junto a ela "o mundo que criara dentro de si, mesmo com os pés ancorados". Nos deparamos com o desamparo frente a pulsante e exigente demanda de amor e pertencimento, peculiar ao crescer e adolescer, através dos seus repetitivos esforços e embaraços para entrar na roda e se fazer incluir na ciranda entre suas irmãs, amigos e amores.
Embora tente se despir das roupagens pueris e livrar-se dos pedregulhos emocionais que outrora a despedaçaram, Virgínia dá-se conta de que seus cacos continuam ali, em sua juventude, ainda que recolados, refletindo mil pedaços e palavras da sua infância.
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"... Há uma distância que conta mais do que os quilômetros e talvez mais até do que os anos-luz: a distância das mudanças"
Quando Vanda e Aldo retornam de uma viagem, deparam-se com rastros do sumiço do gato Labes, uma casa revirada de ponta-cabeça e memórias não apagadas pelo tempo, mas des-botadas de lugar.
Esse é o cenário a partir do qual Laços (2014), do italiano Domenico Starnone, desenvolve-se. Objetos outrora escondidos emergem à cena ajudando a recontar os segredos da família a partir das narrativas do casal e de seus filhos, Sandro e Anna.
As múltiplas leituras desse romance costumam aparecer em diálogo com Dias de Abandono (2002), de Elena Ferrante, guardando estreita conexão em suas tramas, que versam sobre afetos familiares ao desenlace conjugal.
Em ambas as obras, lemos a (con)fusão das narrativas conjugais e parentais. No matrimônio, peças previamente dispostas e movimentos (des)coordenados: a mulher se ocupa dos filhos e da insustentável ordem da casa, enquanto o homem se ocupa do trabalho e de outras mulheres. Juntos, compõem uma maternidade domesticada e uma paternidade lúdica, sustentada por uma forma desajeitada de fazer laço.
"Ambos tínhamos crescido com a ideia de que certo modo de ser fazia parte da ordem natural das coisas. Era natural que nosso casamento durasse até que a morte nos separasse. Era natural que minha mulher não tivesse outro trabalho além do doméstico. E mesmo agora que tudo parecia em transformação – fase pré-revolucionária, se dizia –, não era concebível que as mães pudessem descuidar dos filhos. No entanto, ela estava tocando nessa questão e me perguntava como eu pretendia enfrentá-la. Mais uma vez não soube o que responder."
Na separação, desvelam-se as dores e os controles maternos, assim como a inabilidade e a conveniência paternas, tornando incômodo aquilo que antes funcionava num acordo tácito e culturalmente desigual.
Nesse (con)texto, ninguém é poupado, muito menos aqueles, "em nome dos quais" muitos nós desconfortáveis são suportados.
"Os únicos laços que contam para nossos pais são os que eles usaram a vida inteira para torturar um ao outro."
Ao lidar com os pontos cegos e com os desalinhos do tecido familiar, os filhos são aqueles que muitas vezes destralham os afetos, expondo que a aparente ordem de uma casa, invariavelmente, esconde muitos destroços.
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"... talvez tivesse entendido melhor por que ele tinha ido embora e por que eu, que à desordem ocasional do sangue sempre opus a estabilidade da nossa ordem de afetos, agora sentia de forma tão violenta o pesar da perda, uma dor intolerável, a ansiedade de cair para fora da malha de certezas e ter de aprender outra vez a vida sem a segurança de saber fazê-lo"
Elena Ferrante, famosa e enigmática autora italiana, traz neste livro o relato íntimo de Olga, uma mulher que vivencia o luto da dissolução de seu casamento com Mário, tendo como marca o peso do abandono.
Luto não é necessariamente sobre morte, mas sobre um trabalho psíquico desencadeado por perdas, de um objeto, de uma posição, de um ideal, de relacionamento, de família, de carreira, de prestígio, de tudo aquilo que imaginávamos haver apenas uma forma de viver e de conceber algo.
Neste trabalho, Olga empreende sucessivas tentativas de ler Mário, seus gestos, suas frases, as suas razões, os seus motivos. Percurso que evidencia, antes, o próprio abandono de si, de sua voz, de seus afetos, de seus desejos, sempre implodidos. Da implosão de si à erosão do amor, Eros aparece em sua face avassaladora, explodindo a monotonia dos afetos, des-ordenando tudo àquilo que parecia acomodado, certo e previsível, em seu lugar.
“Eu tinha posto de lado as minhas aspirações para acompanhar as suas. Para cada crise de desconforto dele, eu tinha estancado as minhas crises para poder confortá-lo. Eu tinha me perdido nos seus minutos, nas suas horas, para que ele se concentrasse. Eu tinha cuidado da casa, da comida, dos filhos, eu tinha me ocupado de todas as chatices da sobrevivência do cotidiano, enquanto ele escalava teimosamente o declive da nossa origem sem privilégios. E agora, agora ele me largava carregando consigo todo aquele tempo, toda aquela energia, todos aqueles sacrifícios que eu fizera por ele, de uma hora para outra, para gozar os frutos com outra, uma estranha que não tinha mexido um dedo para pari-lo, nutri-lo e fazer com que ele se tornasse o que era.”
Um divórcio causa fraturas, convida ao trabalho de luto e suas elaborações. Trata-se, no campo do amor, de uma reescrita, de uma reinvenção do lugar que se pensava ocupar no desejo do Outro e o lugar que o outro-parceiro ocupava para o sujeito, em sua economia psíquica.
Nesta leitura, acompanhamos a reescrita de Olga, a mulher abandonada entre a esposa de Mário e a mãe de Gianni e Ilaria.
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" Aos poucos fui percebendo que nenhuma relação que eu estabelecesse no futuro viria sem esta conta da quebra da inocência, quando as pessoas se casam elas não ficam juntas para todo o sempre? então não há segurança com nada e com ninguém?"
A narrativa poética de Aline Bei, premiada escritora brasileira, retrata as nuances afetivas de uma família em separação, sob o ponto de vista de Júlia Terra, filha única, que tenta se refazer entre cacos da desidealização parental.
A escrita insurgente às normas traz a perspectiva de que as famílias e os afetos também o são, circulam subversivos e embaraçados nesse espaço fértil entre silêncios e mal entendidos. De que todo filho é único, ocupa um lugar diferente no desejo do Outro e inventa sua própria ficção a partir deste lugar pendular de onde se ata e se desata continuamente, tentando se re-fazer no mundo. De que as famílias são plurais, podem ser porto, afeto, ancora, abandono, dor, desamparo…
"ao longo dos anos e por trás de cada relação que eu estabelecesse me assombrava a certeza de que as pessoas se abandonam, muitas nem se amam, se casam por medo da solidão e têm filhos pelos mesmos motivos."
O peso da palavra “Abandono” impõe-se sobre os minúsculos movimentos de an-coragem da protagonista, que nos mostra a potência de inscrição da palavra e do afeto em face à violência do ato.
A autora nos presenteia com sua sensibilidade, dando contornos ao que há de Real nos laços familiares, no des-encontro conjugal e parental:
A complexa relação mãe-filha
A separação conjugal e parental
A demissão do pai do seu lugar
As transmissões intergeracionais
A violência intrafamiliar
O encontro com o próprio desejo
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Julia Torres