Em contextos de separação litigiosa, a criança é frequentemente colocada em uma posição delicada, na qual precisa lidar com sentimentos ambivalentes e tarefas que não lhe pertencem. O conflito entre os pais atravessa seu cotidiano e se manifesta em formas de comportamento que, à primeira vista, podem parecer contraditórias, mas que revelam o esforço de adaptação diante de uma realidade marcada por disputas.
Reconhecer alguns comportamentos típicos nesse contexto pode ajudar pais e profissionais a compreenderem melhor as necessidades das crianças e a oferecerem apoio adequado.
Barganha e negociação
Algumas crianças passam a usar estratégias de barganha: prometem bom comportamento, pedem presentes ou “negociam” afeto como forma de tentar agradar e manter a atenção dos pais. Esse comportamento expressa, muitas vezes, o medo de perder vínculos importantes ou uma tentativa de sensibilizar os pais para que atendam os seus desejos e caprichos.
Lealdade dividida
É comum que a criança diga a cada genitor aquilo que acredita que ele deseja ouvir. Em certas situações, esse comportamento se intensifica, para demonstrar cumplicidade e conquistar afeto ou proteção, a criança pode falar mal das experiências vividas com o outro genitor ou mesmo hiper dimensionar questões do cotidiano, produzindo relatos que refletem mais sua necessidade de aceitação do que a realidade dos fatos. Esse esforço para agradar pode parecer obediência, mas esconde uma tentativa de não ferir nenhum dos lados, um peso emocional difícil de carregar.
Mensageiros entre casas
Em outros momentos, a criança assume o papel de mensageira entre as casas. Muitas vezes narra, de forma espontânea ou em resposta a questionamentos insistentes, tudo o que aconteceu durante o período em que esteve com o outro genitor. Esses relatos, por vezes, são usados como forma de controle não apenas da rotina da criança, mas também da vida do ex-companheiro. Além disso, é comum que os filhos sejam encarregados de transmitir cobranças relacionadas ao pagamento da pensão, de dar recados sobre mudanças no calendário de convivência ou de intermediar decisões que deveriam ser tratadas diretamente entre adultos. Essa função os coloca no centro do conflito, fazendo com que carreguem responsabilidades que não lhes cabem e intensificando o sofrimento decorrente da disputa parental.
Sentimento de culpa
É frequente que as crianças se sintam responsáveis pela separação. Podem fantasiar que, se fossem diferentes, menos bagunceiras, mais obedientes, menos exigentes, mais "perfeitas", os pais não teriam se separado. Junto a isso, surge o desejo de restaurar a família, como se estivesse em suas mãos consertar o que se desfez. Carregam, assim, o fardo imaginário de restaurar a união familiar, assumindo silenciosamente uma missão impossível de realizar.
Ciúmes e insegurança com novas configurações familiares
A chegada de novos companheiros e, em alguns casos, de irmãos decorrentes dessas novas uniões, pode intensificar a vulnerabilidade emocional. O ciúme surge não apenas como rivalidade natural, mas como medo real de perder espaço e amor na vida dos pais. A criança pode sentir-se substituída, imaginar que não é mais prioridade ou temer ser esquecida em meio a novos afetos. Essas reações podem se manifestar em comportamentos regressivos, como voltar a fazer birras ou exigir atenção de maneira insistente, em atitudes hostis contra os novos integrantes da família, ou em retraimento e tristeza.
Essas manifestações não devem ser compreendidas como sinais de desobediência ou mau comportamento, mas como expressões de sofrimento e tentativas de adaptação. Elas indicam que a criança procura, à sua maneira, dar sentido a uma realidade que lhe parece instável e marcada por conflitos. Diante disso, é fundamental que pais e profissionais reconheçam que esses comportamentos falam mais de dor do que de manipulação, evitando colocá-la no papel de juiz, aliado ou mensageira dos adultos. O caminho possível passa pela abertura ao diálogo, pela escuta e pelo acolhimento, bem como pela oferta de apoio psicológico quando necessário, como recurso de proteção e elaboração desse sofrimento.
Julia Torres
Referências de Leitura:
Wallerstein, J. S., & Kelly, J. B. (1998). Sobrevivendo à separação: como pais e filhos lidam com o divórcio. Porto Alegre, RS: Artmed.
Dolto, F. (2011). Quando os pais se separam (I. Angelino, Entrev.). Rio de Janeiro: Zahar.
Dias, J., & Oliveira, C.. (2024). Children between Judicialized Family Ties: A Psychoanalytical Reading on the Parental Alienation. Psicologia: Teoria E Pesquisa, 40, e40305.